sexta-feira, 20 de agosto de 2010


Mãos trêmulas, pensamentos desconexos, sentimentos a flor da pele, prontos para uma explosão quando entrarem em contato com qualquer ser que os aborreça, algo reprimido, nó na garganta, ânsia que espera mais um simples acontecimento para jorrar pela garganta o vômito de ira, trazendo consigo tudo que corrói sua essência há tempos, e que nos últimos meses tem atormentado todos os seus dias, horas, minutos, segundos... Ácido que desintegra seus conhecimentos e os expele por suas entranhas, prostituição moral, mãos que puxam para a alienação, mãos que nos dominam sem precisar de algemas, até quando sobreviveremos?

terça-feira, 17 de agosto de 2010


“E o anjo pálido troca o mel pelo sal.” (Caio F.)
- Não entendi aquela frase que postou. O que quer dizer?
- É um pequeno trecho de um conto. Você já leu Caio Fernando Abreu?
- Não. O que o conto diz?
- Vou enviá-lo.
Tudo mudou depressa demais, e o conto foi deixado de lado com os demais do livro, na velha prateleira empoeirada, até que um dia se resolve reviver sentimentos e sofrimentos e lá está ele esperando que se cumpra a promessa.


INFINITAMENTE PESSOAL

E o anjo pálido troca o mel pelo sal.
Começou a amanhecer. Não sei ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas frestas, frinchas — não importa—, tivemos certeza de que começara, claramente, a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas — necessitados de luz, não de sombra.
Tinha roxo e rosa no céu. Até as latas cheias de lixo na rua deserta pareciam vagamente douradas. Fez com que caminhássemos a pé, para olharmos o céu. E enquanto eu olhava o céu limpo da cidade suja, interpunha entre nós seu primeiro muro de palavras. Confusas, atormentadas, sobre tudo e sobre nada: palavras amontoadas umas sobre as outras, como se amontoam tijolos para separar alguma coisa de outra coisa. Eu, mal sabendo que esse — que parecia seu jeito mais falso de ser — seria nas semanas seguintes seu jeito mais verdadeiro, às vezes único.
Quando o tempo passasse um pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça repetiria tonta e lúcida «Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta, caminhando em direção ao dia de hoje — mas ainda não nos queríamos com este enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.
Lembro que olhando para cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais muros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos, conseguiriam derrubar.
Errei pela primeira vez quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar: neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante as ausências, olhando então para cima e abrindo aboca, recebia em cheio na garganta as gotas de mel do jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio. Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.
Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e paixão. Bati as mãos contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.
Queria acordar, mas não era um sonho.
Então localizei outra vez aquele mesmo anjo parado entre nuvens. Estava de branco, agora, mas nenhum sorriso nos severos, em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentro ele, chovia um mar de sal sobre a minha cabeça. Por quê?! — eu perguntei. O anjo abriu aboca. E não sei se entendo o que me diz.

Caio Fernando Abreu

E agora, você entende? Você me entende?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010


Tem pisado em tantos palcos, não se adequa a nenhum, sim a vida tem sido uma peça teatral, tudo faz parte da ficção, nada tem sentido real, até os sentimentos são duvidosos... Depois de muito tempo voltou a ouvir O Teatro Mágico, as primeiras músicas trouxeram novamente vida, pulsação acelerada, não de alegria, não por lembranças boas, sim por dor, por choro, mas ao menos a vida voltou ao corpo que perambula por aí... Mas logo tudo foi absorvido, passou a ser parte da massa amorfa... Ser que vaga pelo nada, sem nexo, sem rumo, sem expectativa, pisa em vários palcos, contracena, sobrevive na ficção que acha que pode chamar de vida, atua, reproduz... Desligou-se de tudo que pudesse lhe causar sofrimento, fechou-se, protegeu-se para que não mais senti-se dor como aquela de pouco tempo atrás... Nesses palcos que atua, tudo é surreal, não tem inspiração para nada, não se entusiasma, não tem perspectiva, caminha sem direção, nada almeja, ou talvez esteja a esperar a morte... Ah, a morte, talvez está esteja a espreitar a tempo, esperando só mais um deslize, ou talvez tenha decidido só observar os passos da massa amorfa... Um ser que a pouco brilhava, buscava, lutava, agora decidido só a seguir até onde o que resta de si se dissipar...

segunda-feira, 2 de agosto de 2010


Que poder há em seus olhos, negros, marcantes, contagiantes... Qual magia eles lançam a quem ousa observá-los a fundo? Que fazes com esses seres que encanta? Os conduz com suas palavras para onde quer... Seu sorriso entorpece e incendeia, paralisa e gela, congela meus olhos nos seus, sua voz conforta, seduz... Estátua que te observa, mármore gélido que seu encanto faz aquecer, derrete, Como fazes isso? Que poder há em seus olhos? A vida parece mais forte em seu ser, Como podes ser assim? Olhar-te tornou-se vício, temo que suas lágrimas possam conter veneno, que sua saliva conduza a morte, mas seu sorriso ofusca o restante do mundo desencantado, me conduz para onde quer... Anjo dos olhos negros para onde estas a me conduzir? Para onde ainda haja encanto? Ou para o limo do poço?

Nos poços

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.


Caio Fernando Abreu