segunda-feira, 26 de julho de 2010


Passos apressados, vozes histéricas, estressadas, melancólicas, olhares raivosos, insanos, nostálgicos, puros, prósperos, sutis, vazios... pés que se cruzam, ombros que se chocam, olhos que se olham, se reconhecem... ela queria dizer oi, e começar o assunto com aquelas frases prontas, Quanto tempo! Como você está? Ainda mora naquele lugar? ou quem sabe tentar falar sobre um amigo em comum, mas não conseguia lembrar de nenhum nome, queria falar sobre o último telefonema, Sabe não atendi sua ligação aquele dia porque não ouvi o telefone tocar, sei que parece uma desculpa, mas foi o que realmente aconteceu! Te liguei depois, mas você não atendeu, liguei diversas vezes, até que um dia ouvi a mensagem do outro lado dizendo que o número não mais existia. Às vezes releio sua carta, guardada entre as páginas da agenda antiga, seis anos se passaram desde aquele réveillon, a passagem do ano já não tem mais o mesmo encanto! Sua carta com aquela canção, às vezes fico cantarolando-a por horas, junto a ela o envelope com a minha resposta, sim eu respondi sua carta naquela mesma noite, ensaiei colocá-la no correio por diversos dias, não tive coragem, a fraqueza me dominou! Insegura que sou tive medo de te fazer sofrer com uma decisão precipitada, tive medo de que abandonasse seus sonhos, mas naquela noite era o que eu mais queria, mas fui covarde... ela covarde que é, desvia o olhar, abaixa a cabeça e segue transbordando em lágrimas.

segunda-feira, 19 de julho de 2010


Colocou sua máscara, vestiu-se com o personagem, caminhou por toda a sala relembrando o texto, que havia apresentado a menos de vinte quatro horas e lateja em sua cabeça o dia todo, como se realmente fosse necessário fazê-lo. Fez pose para algumas fotos e foi surpreendida por outras, inspirou profundamente e deixou todo o desespero e insanidade que envolvem seu personagem adentrar em seu ser... Caminhou pelo palco, deitou-se e começou sua cena... Gritou, caminhou, ajoelhou-se, desesperou-se, cravou as unhas em sua pele, puxou seus cabelos, jogou-se no chão, insana, entregue ao desespero, desistente... As demais cenas continuaram, a peça acabou, os aplausos soaram, agradeceu, foi para o camarim e se despiu... Despiu-se da capa, despiu-se da máscara, ajeitou os cabelos como dava, e saiu, cumprimentou alguns, conversou por alguns minutos e se foi, esquecendo de se despir da insanidade e desespero de seu personagem, que agora já não é mais personagem, está impregnado em sua pele, sua mente, sua alma, faz parte de seu ser.

domingo, 18 de julho de 2010


Voltou, voltaram, depois de tanto tempo que cheguei a acreditar que poderiam ficar onde estavam para sempre, que haviam me esquecido, ignorado, desprezado, mas voltaram, como quem passa muito tempo fora e quando chega quer logo reconquistar tudo que deixou, discretamente, mas sem dar chance ao que antes ali estava, foram recuperando posse do que não lhes pertence, invadindo, não por amor, não por cuidado, e sim para a destruição que constroem lentamente, durante a noite, manipulando, ofendendo, entristecendo, dilacerando, aterrorizando, buscando estilhaçar a sanidade e alastrar a insanidade... Eles voltaram, entusiasmados, confiantes, majestosos, eficazes, começaram sutilmente, mas logo isso irá mudar, eu os conheço bem, sei do que são capazes, sei o que buscam, persistentes, vorazes, nunca irão desistir... Voltaram para concretizar o que há tempos iniciaram, voltaram para a assolação.

sábado, 17 de julho de 2010

A Morte dos Girassóis

Mina Anguelova, Os Girassóis

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo lenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei queque foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na quinta-feira”. Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral”.
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, crau! Veio uma chuva medonha e deitou-o por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a idéia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 7 de julho de 2010


Chegou mais cedo como de costume, mas dessa vez não ficou esperando que mais alguém chegasse para que não entrasse sozinha, não esperou que alguém saísse e perguntasse o que desejava, entrou, simplesmente entrou... Deparou-se com uma sala ampla e vazia, a sua direita uma porta espaçosa de onde facilmente se via duas pequenas salas, vazias, a sua frente outra porta, pequena, mas ela sabia que era somente aquela pequena porta que a separava do "mundo encantado"... A sua esquerda outra porta, aberta, uma sala discreta, três estofados, uma mesa, duas cadeiras, e ninguém... Ao lado da mesa outra pequena porta, de onde gargalhadas surgiam, ela entrou, as duas pessoas que lá estavam a cumprimentaram, não perguntaram nada, o que desejava, quem era, com quem queria falar, chamaram por uma terceira pessoa, o “encantador”...
Foi você quem me ligou hoje?
Não, te liguei na semana passada, não pude vir antes...
Ah sim! Você começa hoje?
Não, queria observar antes, posso?
Claro, pode ficar a vontade.
Descreveu a rotina do local, apresentou-a para todos, entusiasmou, alegrou, encantou mais o ambiente com cada palavra, seus olhos radiantes, seu corpo todo expressa seu sentimento pelo local, o “mundo encantado”... O telefone tocou, pediu licença para atender, e ela saiu para fascinar-se com o ambiente... Agora a pequena porta estava aberta, podia-se ver parte do “mundo encantado”, hesitou em aproximar-se, sentiu ao mesmo tempo medo e uma vontade enorme de avançar em direção a ele, respirou fundo e avançou em direção a porta onde duas pessoas conversavam, olhando para ele e para os demais “encantadores” que lá estavam...
Olá.
Olá.
Você está aqui há quanto tempo?
Já faz mais de um ano, tive que me afastar por um tempo, tem uns seis meses que voltei. Você começa hoje?
Não, hoje vou só observar.
Você vai gostar. Começa hoje!
Ah vou observar, na próxima semana começo.
Você vai gostar!
Conversou por alguns minutos, até que foi convidada para entrar, respirou fundo novamente, ficou tonta com a ansiedade, o estômago nauseando, mãos e pernas trêmulas, mas não se deteve, deu alguns passos, e lá estava ela, dentro do “mundo encantado”, sentou-se e continuou a conversar, até que chegaram mais pessoas, e mais... Um novo “encantador” então convida a todos para se aproximarem, todos se vão, ela fica sozinha pela primeira vez desde que chegou... Sentada, olha, ri, seus olhos brilham, fica encantada, descobre que todos com quem conversava a poucos minutos são "encantadores", e ela a “encantada” admira tudo, cada centímetro do “mundo encantado”, admira cada “encantador”, até que em um instante, quando olhava todos, teve certeza que já havia vivido aquilo antes, não sabe como, não conhecia o “mundo encantado” nem os “encantadores” até poucos minutos atrás, como poderia já ter vivido aquilo antes? Fica confusa, sente-se tonta, confunde com surto, mas logo os “encantadores” lhe trazem de volta, com seus sorrisos, seus cantares, seu encantamento, fica por mais uma hora, e quando tem que ir, sente uma angústia por ter que deixar o “mundo encantado” e ao mesmo tempo a euforia por saber que pode voltar quando quiser...
Você volta?
Sim, na próxima semana!
A “encantada” sai sentindo que agora também já faz parte do “mundo encantado”, e que agora é também uma “encantadora”.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Tratado sobre o Eu, o Outro e a Insanidade


Não faz tanto tempo assim, minhas lembranças confusas, meu Eu parece não ser mais o mesmo Eu de pouco tempo atrás, seu Eu parece ser outro Eu que nunca conheci, talvez nunca tenha conhecido seu verdadeiro Eu, talvez nunca tenha sido o que pensei ser... Devaneios ou recordações? O que vaga em minha mente? Alucinações? Que seja, melhor assim, melhor o passado insano que a decepção, melhor saber que seu Eu nunca foi o que meu Eu achava conhecer, melhor saber que seu Eu sempre foi cercado pela mediocridade, que seu Eu sempre pensou só em si, egoísta, narcisista, egocentrista... Melhor saber que seu Eu é imaturo aos vinte e poucos, talvez ele nem saiba que já chegou lá, talvez seu ápice seja sempre os quatorze... Futilidade, ridicularização dos sentimentos alheios... Moralidade não presente em seu Eu passado, presente, quem sabe futuro... Seu Eu inocente? Não sabe o que aconteceu? Ou talvez o cinismo esteja a transbordar dele... Meu Eu não quer jamais parecer com seu Eu, meu Eu quer o fim dessa hipocrisia, meu Eu retira dele tudo que seu Eu possa ter causado, deixado, meu Eu recomeça livre e espera jamais confiar no seu Eu...